É #FAKE que máscaras de proteção podem levar à autocontaminação pelo coronavírus e que vacinas contra a gripe podem causar a Covid-19

Documentário norte-americano com cientista controversa chamado 'Plandemic' dissemina várias informações falsas. Ele foi banido do Facebook e do YouTube, mas foi traduzido e tem circulado bastante no WhatsApp.

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Um documentário bastante difundido nas redes sociais afirma que vacinas da gripe já conhecidas contêm o coronavírus e que o uso de máscaras de proteção ativam o vírus já instalado no organismo humano, numa espécie de autocontaminação. As informações são #FAKE.

 — Foto: G1

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O documentário se chama “Plandemic” e é permeado por teorias da conspiração a respeito do novo coronavírus. Com 26 minutos de duração e centrado numa entrevista com a bioquímica Judy Mikovits, autora do livro “A praga da corrupção: reestabelecendo a fé na ciência” (na tradução livre para o português), o filme teve milhares de visualizações nas redes sociais. E acabou sendo banido de plataformas como o Facebook e o YouTube, justamente por conter uma série de incorreções.

Por exemplo, a cientista – presa em 2011 sob acusação de roubar computadores e dados do laboratório em que trabalhava, o que ela refuta no documentário – diz que vacinas já disseminadas contra a gripe, ministradas pelo mundo, contêm o coronavírus. Afirma ainda que o uso de máscara facial não protege as pessoas da infecção, e sim as expõe ao risco de desenvolver a Covid-19, o que não é verdade.

“As vacinas contra a gripe aumentam a chance de se ter a Covid-19 em 36% (…) Os coronavírus estão em todos os animais. Se você, em algum momento, já tomou uma vacina contra a gripe, você foi infectado com um coronavírus. Aí você coloca uma máscara e ela ativa o vírus. Você fica doente pelo seu próprio vírus reativado. E se esse coronavírus for o Sars-CoV-2, isso é problemático”, afirma Judy, que é conhecida nos Estados Unidos por fazer parte do movimento antivacinal – o que ela também nega no vídeo.

Outros médicos que participam do documentário, que já teve milhões de espectadores, de acordo com o New York Times, dizem que a utilização de máscaras e o distanciamento social não são uma saída para vencer a pandemia, como vem sendo propagado. Isso porque as duas medidas impedem que as pessoas tenham contato com todos os vírus e bactérias que fortalecem seu sistema imunológico. Segundo os entrevistados, após o período de distanciamento, o sistema imunológico de quem ficou confinado estará enfraquecido, e a população estará mais propensa a adoecer.

Médicos ouvidos pela CBN, no entanto, são unânimes ao confrontar essas informações: o novo coronavírus não está presente nas vacinas contra a gripe, o uso da máscara no rosto não o “reativa” no organismo e não existe a hipótese de autocontaminação.

Sobre as críticas à quarentena, Paulo Santos, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologista, explica que o confinamento não é maléfico para os sistemas de defesa. “Por mais que seja demorado aos nossos olhos, o período de quarentena é muito curto para gerar problemas imunológicos. Para haver comprometimento imunológico, um indivíduo precisaria ficar períodos muito longos sem qualquer interação com outras pessoas, talvez anos e anos”, esclarece.

“A única medida atualmente comprovada para redução da velocidade de surgimento de casos é o isolamento social. Sabemos que também há efeitos negativos como o impacto na economia e as questões psicológicas, emocionais, mas o isolamento de forma alguma afeta o nosso sistema imunológico. Adiar uma possível contaminação tem benefícios claros, já que a qualquer momento pode surgir um tratamento eficiente ou até mesmo uma vacina”, continua Santos.

Sobre a falsa teoria de que as vacinas contra a gripe contêm o coronavírus e que o uso da máscara faz mal, o pneumonologista Rodolfo Fred Behrsin, professor do Hospital Universitário Gaffreé e Guinle, afirma: “Não tem lógica dizer que usar máscara ativa o coronavírus. As vacinas contra a gripe não têm o coronavírus, e aumentam nossa imunidade, pois produz anticorpos. Em relação à afirmação de a vacina da gripe aumentar o risco de coronavírus, também não há relação. Pelo contrário: se não tivermos gripe, estamos mais fortalecidos. Imagina pegar Covid-19 pouco tempo depois de uma gripe?”

Behrsin reforça a recomendação pelo isolamento social: “Ficar em casa, na atual epidemia, é importante, para que não haja um volume de pessoas ao qual seja impossível de dar assistência. Existe um mito que diz que as pessoas, para se proteger do coronavírus, não devem ficar presas em casa, porque assim elas não estão em contato com agentes infecciosos do meio ambiente que nos levariam à imunização. Só que a questão é outra”, diz.

“Se nós estivermos bem alimentados, dormindo bem, com nosso calendário de vacinas em dia, a quarentena não vai piorar nossa imunidade. Nosso sistema não conhece o coronavírus, ele é novo, então nós somos vulneráveis a ele. Não é como outros com os quais temos contato volta e meia, como os da gripe. O nosso organismo sabe combater essas infecções”, reitera.

Outra afirmação de Judy no documentário é de que o novo coronavírus foi manipulado em laboratório e que, portanto, a pandemia não tem origem natural. Segundo ela, essa manipulação se deu durante pesquisa conjunta que envolveu laboratórios de Wuhan, na China, onde a pandemia começou, e a Universidade da Carolina do Norte.

“Não digo que foi criado em laboratório, mas não dá para dizer que foi natural (…) Se fosse natural, levaria uns 800 anos. Isso aconteceu com o Sars-1 em uma década”, ela diz no documentário.

A equipe do Fato ou Fake já se debruçou sobre essa pesquisa. Especialistas explicam que não há qualquer relação do vírus estudado em 2015 com a pandemia atual. A revista científica “Nature”, na qual o estudo foi publicado à época, chegou a fazer um alerta recente neste ano de que a pesquisa está sendo usada para embasar teorias falsas sobre o novo coronavírus.

Sobre a afirmação de que são necessários 800 anos para a evolução do vírus e contaminação humana, Rodolfo Fred Behrsin pondera: “Isso pode mesmo ter levado um tempo grande e pode ser que estejamos no final desse processo”.

Renato Kfouri, infectologista e presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, lembra que o sequenciamento genético do novo coronavírus já mostrou que ele é muito semelhante ao Sars 1, e que não há por que acreditar que o vírus causador da pandemia atual tenha saído de um laboratório.

“Ele não foi criado em laboratório. As sequências genômicas reconhecidas, inclusive com as mutações já sofridas, mostra o caminho do novo coronavírus. Foi rastreado de onde vem o vírus, o hospedeiro, toda a sequência. Ele se assemelha muito aos coronavírus naturais, de animais e a Sars 1, do surto de 2002 e 2003. Ele se chama Sars-CoV-2 porque a similaridade com o primeiro é de mais de 90%”, explica.

O médico também rebate a teoria de que o novo vírus está em vacinas contra a gripe, e que o uso da máscara deixa a pessoa infectada ainda mais fragilizada. “O Influenza e o coronavírus são de famílias diferentes de vírus, têm características moleculares e genômicas diferentes. É impossível um vírus conter o outro. As vacinas para gripe têm pequenos fragmentos do Influenza, que é inativado, fragmentado anualmente. Não há material genético vivo. Então não é possível que cause gripe ou outra doença. E quanto à máscara, ela não piora nada, não aumenta sua infecção. A infecção vem de fora para dentro, não de dentro para fora. Mesmo se você estiver doente, o fato de ter uma barreira não aumenta a gravidade.”

O infectologista Luis Fernando Waib ratifica que a hipótese da autoinfecção não tem embasamento científico. “Ninguém se autocontamina. A máscara pode contaminar outra pessoa que usá-la, não a própria. Sobre a vacina de gripe causar Covid-19, essa é uma ilação sem lógica. A vacina da gripe suscita um tipo de imunidade possível pro Influenza”, diz o médico, especialista em infectologia hospitalar e integrante da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Em “Plandemic”, Judy, que participou, nos anos 1980, de grupos de estudo sobre o HIV, o vírus da Aids, faz várias acusações ao epidemiologista Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e uma das principais autoridades de saúde no país no que se refere às políticas para conter a pandemia. Entre as afirmações dela está a de que Fauci atrasou propositalmente a publicação de artigos capazes de ajudar na cura da Aids nos anos 1980. Ela não apresenta, porém, provas que sustentem suas afirmações.

No filme, Judy diz também que substâncias naturais que podem ajudar no tratamento de doenças infecciosas têm sido banidas pela força da indústria farmacêutica ao longo dos anos nos EUA, porque não há como patenteá-las e, portanto, lucrar com elas. Judy e médicos entrevistados também afirmam no documentário que os números relativos a casos de Covid-19 nos EUA estão sendo inflados para que instituições recebam aportes financeiros. Ela tampouco prova essa tese no filme. Um dos epicentros da Covid-19 no mundo, o país já contabiliza mais de 84 mil mortes.

O documentário viral foi alvo de checagens de outras agências internacionais, como Snopes, Politifact, FactCheck.org e AFP, que também classificaram como falsas as alegações.