Testemunha de acusação

Livro do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta revela o descaso do presidente Bolsonaro com as vítimas do coronavírus e a incapacidade do governo federal de compreender a gravidade da pandemia

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Se algum dia o presidente Jair Bolsonaro for julgado no Tribunal de Justiça de Haia, por sua atuação diante da pandemia do coronavírus, o livro “Um Paciente Chamado Brasil – Os Bastidores da Luta Contra o Coronavírus”, de Luiz Henrique Mandetta, poderá ser usado como prova acusatória. Em um relato sincero e repleto de alfinetadas à família que manda hoje no País, o ex-ministro da Saúde descreve o contexto político de sua experiência à frente da pasta, das primeiras sondagens feitas pelo deputado Onyx Lorenzoni, à cena final, em que deixa Brasília de carro, com a esposa, ao som de “Hey Joe”, de Jimi Hendrix, no volume máximo.

Um testemunho em primeira pessoa permite ao autor apresentar sua própria versão dos fatos, com controle total da narrativa e sem contrapontos. Com todas as ressalvas que uma obra como essa merece, portanto, o que resta é um retrato assustador do cenário político no País e da incompetência gritante do governo Bolsonaro diante de uma crise muito maior do que sua capacidade de reação. A vantagem para o autor é que, por tratar-se de fatos recentes, muito do que está no livro ainda está fresco e pode ser facilmente corroborado pela memória. Por mais que carregue nas tintas, Mandetta tem o bom senso – e a realidade a seu lado. O ex-ministro alega que escreveu o livro para as pessoas entenderem que a política é mais poderosa do que qualquer boa intenção. Conta que conheceu Jair Bolsonaro no Congresso quando ambos eram deputados. O então político do baixo-clero era “afeito aos embates diretos, algumas vezes acima do tom, apostando na polêmica e na ruptura iminente de um país já dividido”. Os eufemismos desaparecen na medida em que a proximidade com o vilão do livro aumenta. Em suas linhas – e, às vezes, nas entrelinhas – a obra confirma muito do que já se sabia, mas há novos elementos. A tentativa de interferência de Flávio Bolsonaro no Ministério da Saúde, por exemplo: ele exigiu a exoneração de quatro técnicos, alegando que queria colocar “gente nossa”. O autor finge ingenuidade: “será que foi um mal-entendido ou tem gente do Rio querendo assumir cargos no ministério?”. Mandetta não aceitou. E acusa: “quem impôs os nomes (Flávio) mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde”. Enquanto isso, Eduardo Bolsonaro, atrapalhava a relação com a China ofendendo o país pelo Twitter logo após o ministério da Saúde importar de lá 40 milhões de máscaras.

As menções ao presidente revelam um homem desconfiado, infantil, refém de suas próprias paranóias, e afeito a teorias da conspiração. Bolsonaro agia “como se o coronavírus não existisse”: não havia sequer um frasco de álcool em gel em seu gabinete. O ex-ministro o compara a um paciente psiquiátrico que não aceita o luto. Primeiro, veio a negação (“é só uma gripezinha”); depois, a raiva do médico (Mandetta); finalmente, o milagre (a cloroquina). O presidente é descrito como bipolar: combinava uma coisa com o ministro e fazia o contrário logo depois. Prometia cuidar do isolamento, aí saía para abraçar apoiadores; ouvia recomendação antes de uma live; fazia um discurso dizendo o oposto. O episódio mais assombroso, porém, é a reunião em que Mandetta apresentou três conjunturas possíveis: 180 mil, 60 a 80 mil e 30 mil mortos por Covid-19. Como já passamos dos 145 mil, fica claro que o governo optou pelo pior cenário possível — um descaso doloso.

Enquanto os brasileiros morriam, o presidente se preocupava com o governador de São Paulo, João Doria (“você vai elogiar o Doria?”), mandava o laboratório do Exército fabricar cloroquina (“na Fiocruz só tem comunista”) e criticava o embaixador chinês (“agente para desestabilizar a direita na América do Sul e promover a volta da esquerda”). Bolsonaro alimentava a tese de que o coronavírus era uma arma biológica e que isso seria comprovado. Há trechos em que Mandetta questiona até sua capacidade intelectual: “eu tentava explicar as coisas em um linguajar bem raso, porque se você falar em um linguajar normal ele não demonstra interesse, não dá atenção”. Outro que não escapa de críticas é o ministro da Economia, Paulo Guedes. Segundo Mandetta, Guedes demonstrava não apenas um profundo desinteresse pela pandemia, mas uma incapacidade de compreender sua gravidade. Vive um mundo à parte, onde o que importa é apenas a exaltação que faz de suas próprias qualidades. Ao discutir um reajuste no preço dos remédios, sequer sabia que eles já são tabelados desde o governo FHC. Guedes nunca pediu dados e desprezava o Ministério da Saúde. Já o deputado Onyx Lorenzoni, um dos responsáveis pela indicação de Mandetta, é um “judas” que teve a coragem de gravar escondido uma reunião de parlamentares e depois dizer que “foi sem querer”. Por mais que fique datado rapidamente, o livro de Mandetta é um documento válido sobre um período trágico da história do País, onde um presidente que se autodeclara “patriota” não demonstrou um pingo de empatia pela vida dos cidadãos de sua pátria.

Trechos do livro de Mandetta

“Eu não podia fazer nada. Ele queria no seu entorno pessoas que dissessem só aquilo que ele queria escutar. E o que ele queria escutar era que a cloroquina era a salvação. ‘Vamos dar esse remédio e pronto, está resolvido’, era o que ele achava.”

“E o presidente ia para a TV em mais um pronunciamento, clamando pela volta da normalidade. (…) Devido ao seu ‘histórico de atleta’, caso fosse contaminado sentiria apenas uma ‘gripezinha’ (…) Foi espantoso. Bolsonaro falou tudo aquilo em rede nacional sem ter sido assessorado por mim ou nenhum técnico do Ministério da Saúde. Ele fez o discurso baseado apenas nas opiniões dos filhos e de seu entorno.”

“Ficou muito difícil ter confiança no presidente. Todas as vezes que conversávamos, ele dizia que me deixaria trabalhar, organizar o sistema e implementar o que fosse necessário. Mas falava isso de manhã e fazia o diametralmente oposto à tarde.”

“Para se ter uma ideia do clima de tensão entre Bolsonaro e meu ministério, o presidente não deixou que publicássemos recomendações sobre sepultamento no caso de transmissão sustentada do coronavírus. Segundo ele, o tema era mórbido demais. Insisti que isso iria causar o colapso funerário.”