Barroso diz que MP de Bolsonaro não dá imunidade a atos ilícitos e de improbidade na pandemia

Ministro é relator de seis ações no STF contra a medida provisória. Texto prevê que agente público só pode ser punidos se houver comprovação de erro intencional ou grosseiro.

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O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou nesta quarta-feira (20) para que a medida provisória que livra agentes públicos de punição durante a pandemia de coronavírus não tenha nenhuma interpretação que dê imunidade para atos ilícitos e de improbidade.

No entendimento de Barroso, devem ser punidos atos que violem entendimentos técnicos e científicos reconhecidos por autoridades médicas e sanitárias, os princípios da precaução e prevenção e que atentem principalmente contra a saúde e a vida da população.

O ministro é relator de seis ações que questionam a MP 966, editada por Jair Bolsonaro na última semana. Após a leitura do voto, o julgamento foi suspenso e deve ser retomado nesta quinta (21) com a posição dos demais ministros.

No voto, Barroso afirmou que, muito embora o objetivo da MP tenha sido o de dar segurança aos agentes públicos, “a dura verdade é que, por muitas razões, ela não eleva a segurança dos agentes, e ainda, passou a impressão, possivelmente errada, mas passou a impressão, de que se estava querendo proteger coisas erradas”.

Barroso votou para manter a MP em vigor, mas para que ela seja interpretada de acordo com princípios constitucionais. “O problema estará na qualificação do que seja erro grosseiro, e, portanto, acho que essa é a intervenção que nós precisamos fazer”, argumentou.

“Propinas, superfaturamentos ou favorecimentos indevidos são condutas ilegítimas com ou sem pandemia, portanto, crime não está protegido por essa MP […] E atos ilícitos, tampouco. Qualquer interpretação que dê imunidade a agentes públicos por atos ilícitos ou de improbidade ficam desde logo excluídos. O alcance dessa MP não colhe atos ilícitos e de improbidade”, disse.

“A segurança viria se tivesse desde logo o monitoramento quanto à aplicação dos recursos por via idônea, em tempo real”, disse o ministro. “Se formos capazes de monitorar as decisões dos administradores, isso sim daria segurança a eles.”

A MP criou uma lista de ressalvas para a responsabilização de agentes públicos por erro grosseiro ou ação e omissão com dolo durante a pandemia, como a incompletude de informações e incertezas sobre medidas adequadas a tomar – o que tem sido visto como um salvo-conduto para cometimento de irregularidades com dinheiro público.

O ministro entendeu ainda que devem ser consideradas como “erro grosseiro” medidas que contrariem critérios científicos e técnicos estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias nacional e internacionalmente reconhecidas, ou que não observem os princípios constitucionais da precaução e da prevenção.

“Tais princípios significam que nada que não seja comprovadamente seguro pode ser legitimamente feito”, diz o relatório.

O ministro disse que há extremos a serem levados em consideração, o de agentes públicos incorretos, que não desprezam qualquer oportunidade para levar vantagem em relação a recursos públicos, e no outro extremo, o risco de o administrador correto ter medo de decidir o que precisa ser decidido por temor de retaliações.

O texto já está em vigor, mas precisará ser aprovado pelo Congresso Nacional. As medidas provisórias têm validade de 60 dias, podendo ser prorrogadas por mais 60. Se não forem votadas nesse prazo, deixam de valer e não podem ser reapresentadas no mesmo ano.

Quando a MP foi editada, especialistas consideraram o conteúdo “obscuro” e “autoritário”. O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, por exemplo, chegou a dizer que o ato foi “desnecessário”.

Comentários sobre pandemia

Ainda no voto, Barroso citou o contexto em que a MP foi editada – uma pandemia com consequências sobre a sociedade brasileira, cujos temas centrais em discussão trazem uma “tensão cruel entre isolamento ou distanciamento social e retomada da economia”.

“É evidente que o isolamento social é a recomendação pacífica das autoridades sanitárias de todo o mundo, não há alternativa”, disse. “Não há recuperação econômica que há de nos servir se as pessoas já tiverem morrido. Porém, a contrapartida tem sido um impacto na economia. Tem gente que se não sair morre de fome.”

“A segunda questão polêmica que existe está na utilização de determinados medicamentos cuja eficácia e segurança ainda são controvertidas na comunidade médica e aqui não nos cabe tomar partido nessa disputa”, completou. “Porém, no que leio na imprensa, majoritariamente, há uma postura de pesquisas de que o medicamento, ele não deva ser prescrito.”

Argumentos

Mais cedo, a Advocacia-Geral da União (AGU) encaminhou defesa da medida aos ministros, afirmando que ela não tem o objetivo de “blindar” os servidores ou livrá-los dos deveres e obrigações próprios, mas que resultou do “apelo” dos agentes submetidos à “elevada pressão”.

“Sua ideia central é dar segurança jurídica ao administrador, evitando o travamento na tomada de decisões em razão de receios de responsabilização pelos atos e pelas decisões que terão que ser tomadas sob o contexto, sério e urgente, da pandemia de COVID19”, diz a AGU.

A AGU diz que, em meio à pandemia, “o gestor público se vê premido por diferentes contingências a serem ponderadas na tomada de decisão, sem que haja tempo hábil para uma reflexão mais apurada, diante da exigência de medidas rápidas e efetivas no combate à doença”.

Um dos partidos autores das ações, a Rede Sustentabilidade afirma que a MP restringe a responsabilização de agentes públicos no momento em que há uma flexibilização no controle dos atos da administração pública – inexigibilidade de licitações, por exemplo.

“Assim, a União, no conjunto de suas ações, acaba por permitir que danos ao erário não sejam devidamente ressarcidos”, diz a ação.

Ainda segundo o partido, “a blindagem do agente público causa, de modo reflexo, o efeito sistêmico de inúmeros prejuízos à sociedade, na medida em que não precisará refletir adequadamente sobre suas decisões, pois estará blindado a priori a qualquer pretensa responsabilização, bastando-lhe alegar que não agiu por culpa grave (erro grosseiro) ou dolo”.

“Tem-se um verdadeiro prato cheio para que a atuação ilícita (civil e administrativa) de agentes públicos fique impune”, diz ainda o partido.

“É justamente em contextos de crise que a sociedade mais quer transparência e atuação correta e eficiente da Administração Pública”, defende a ação.

Já o Cidadania afirma que é “patente” a inconstitucionalidade da MP e que ela “afasta o mais importante pressuposto da responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos pelo dano por ele próprio causado à administração pública ou a terceiros, que é a ligação consequencialista entre a conduta e o resultado danoso”.

Diz também que, nos casos de improbidade administrativa, as situações em que se verifica “a ineficiência, a incompetência gerencial e a responsabilidade político-administrativa” não demandam a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o interesse público”. “Trata-se, na realidade, de uma heterodoxa hipótese de irresponsabilidade objetiva”, completa.