O número de brasileiros sob risco todos os anos, que se refere ao período de 2016 a 2020, praticamente dobrou em relação ao estimado para 2015.
Para o médico André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI-Fiocruz), não há um único fator que esteja por trás desse aumento.
“Primeiro, tivemos uma melhora nos sistemas de detecção e informação, que permitem conhecer os cenários em que as pessoas estão mais expostas”, diz.
Ou seja, anteriormente, quando nem se sabia ao certo a verdadeira situação dessas doenças — número de casos e mortes, locais com mais transmissão, etc. — era ainda mais difícil estimar o impacto delas na população.
“Em segundo lugar, existem condições que podem favorecer a ocorrência dessas doenças”, diz o especialista, que é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
Embora não apareçam na lista de doenças negligenciadas do Brasil, o calor também representa uma boa notícia para o mosquito por trás de dengue, zika e chikungunya — o Aedes aegypti.
A epidemiologista Ethel Maciel, secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, cita ainda dois outros elementos que ajudam a entender este cenário.
“Na Amazônia, tivemos secas recentes, o que fez muitas populações ficarem desassistidas do ponto da saúde, porque há lugares onde você só chega de barco.”
A especialista ainda aponta que o garimpo ilegal “restringiu ou dificultou o acesso à água e aos alimentos no território yanomami e em muitas outras regiões”.
Rio seco em Manaus com barcos ao fundo
Como resolver esse problema?
Para lidar com as doenças negligenciadas e outras condições de saúde, o governo federal anunciou no início de fevereiro o programa Brasil Saudável.
A partir do lançamento do projeto, que contou com a presença do biólogo Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a lançar uma política que pretende eliminar ou reduzir o impacto de 14 doenças ou infecções que têm um componente social, relacionado à pobreza ou às populações vulneráveis.
O Brasil Saudável visa erradicar até 2030 doenças como malária, Chagas, tracoma, filariose, esquistossomose, oncocercose e algumas verminoses intestinais.
Além disso, há metas para reduzir casos de tuberculose, HIV, hanseníase e hepatites virais — e acabar com a transmissão vertical (quando o agente infeccioso passa da mãe para o bebê na gestação, parto ou amamentação) de HIV, sífilis, hepatite B, Chagas e HTLV.
O Brasil Saudável é liderado pelo Ministério da Saúde, mas conta com a participação de 14 ministérios reunidos em um comitê, porque muitas das ações não envolvem apenas a prestação de serviços médicos, mas também questões de saneamento básico, moradia e combate à pobreza.
“Precisamos do Ministério da Justiça, porque algumas das doenças se concentram no sistema prisional. Precisamos do Ministério dos Povos Indígenas, porque algumas dessas populações são mais afetadas por determinadas condições. Precisamos do Ministério da Igualdade Racial, uma vez que parte das enfermidades acomete desproporcionalmente a população negra. E assim por diante”, exemplifica Maciel.
“O Brasil pode ser protagonista no enfrentamento de muitas dessas doenças”.
Alguns dos problemas negligenciados que aparecem no boletim epidemiológico já estão bem próximos de virar coisa do passado.
É o caso da filariose linfática, também conhecida como elefantíase. O Brasil tinha poucos focos, em cidades pernambucanas, e não registrou casos nos últimos anos.
Com isso, as autoridades sanitárias fizeram um dossiê no final do ano passado pedindo que a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), o braço da OMS nas Américas, conceda o certificado de eliminação dessa verminose ao país.
Maciel espera que o Ministério da Saúde consiga fazer ainda em 2024 uma requisição parecida sobre a oncocercose e o tracoma, para que esses quadros também estejam oficialmente fora do mapa brasileiro.
Pessoa com filariose
Siqueira pondera que a eliminação de uma moléstia não significa que a história acabou.
“É possível, sim, eliminar essas doenças, e nosso país já fez isso em outras ocasiões. Mas a fragilidade dos sistemas de saúde locais podem fazer com que elas voltem”, observa ele.
“Para muitas delas, precisamos de estratégias conjuntas que ultrapassam o setor da saúde e estão relacionadas às condições de vida e de habitação melhores.”
Croda também vê com bons olhos a iniciativa do governo e chama a atenção para a necessidade de investimentos.
“É importante existir uma vontade política para eliminar essas doenças, mas precisamos ir além”, aponta ele.
“Necessitamos de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, porque não há interesse da indústria farmacêutica em criar tratamentos, vacinas ou testes diagnósticos para essas condições.”
O infectologista lembra que, há alguns anos, existia uma grande dificuldade em se obter exames para detectar a doença de Chagas — e isso só mudou quando o poder público decidiu que o Brasil iria liderar essa busca por testes.
“Sem investimentos destinados para isso, não conseguiremos atingir as metas de eliminação”, alerta Croda.
Maciel pontua que haverá financiamento para o projeto, e os valores serão maiores ao que é historicamente gasto com as doenças negligenciadas.
“Além disso, o Novo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] também tem os vazios assistenciais como alvo, com foco especial no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde muitas dessas condições têm maior concentração.”