O tema voltou a andar no novo governo, ansioso por novas fontes de arrecadação para bancar o aumento de gastos sociais e obras, prometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Fernando Haddad vê potencial para arrecadar entre R$ 2 bilhões e R$ 6 bilhões
O Ministério da Fazenda ainda está fechando os detalhes de como funcionaria essa arrecadação, para enviar uma proposta ao Congresso. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse ao portal UOL que a arrecadação pode ficar entre R$ 2 bilhões e R$ 6 bilhões.
A ideia em discussão é criar uma taxa sobre os ganhos das empresas e um tributo sobre os ganhos do apostador. Além disso, o governo arrecadaria com a venda de licenças para as empresas poderem operar. Discute-se cobrar R$ 30 milhões pelo direito de operar por cinco anos.
O setor se divide sobre esses valores. Para o advogado Felipe Maia, seria mais adequado um valor mais baixo, como R$ 5 milhões, para atrair um número maior de empresas para a legalidade.
Já o empresário André Feldman, presidente da recém-criada Associação Nacional de Jogos e Loterias, prefere um valor maior, justamente para que o mercado não tenha um número muito grande de sites. Por outro lado, ele defende que a licença dure dez anos em vez de cinco, para aumentar o horizonte de planejamento do investimento.
“Eu acho que quanto mais alta a régua, melhor. Mais fácil para o governo fiscalizar e arrecadar. Eu prefiro trabalhar num universo de cem, duzentas empresas, do que duas mil”, ressalta.
“Para o empresário correto, com o tamanho do mercado, o valor da outorga é o que menos interessa”, disse ainda.
O setor também espera que a regulamentação aumente a fiscalização e controle contra manipulações de apostas, algo que causa prejuízos financeiro e reputacional às empresas.
Em fevereiro, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) realizou a operação “Penalidade Máxima” contra uma associação criminosa que teria manipulado resultados de jogos da rodada final da Série B do Campeonato Brasileiro do ano passado, com objetivo de lucrar com apostas em sites esportivos.
No esquema descoberto, jogadores de ao menos três times receberiam R$ 150 mil para cometer pênaltis no primeiro tempo da partida. Um deles, porém, não foi escalado e tentou convencer outro a cometer a penalidade, o que acabou levando a direção do clube a descobrir o caso e denunciar ao MP. A estimativa dos apostadores seria faturar R$ 2 milhões com a manipulação, segundo a investigação.
Contra vício, psiquiatra da USP defende restrições ao setor
A expansão vertiginosa do mercado, porém, vem acompanhada de um fenômeno preocupante, o aumento do vício nesses sites de apostas, afirma o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (Pro-Amjo) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo ele, tem ocorrido uma mudança no perfil dos atendidos pelo programa. Antes, o público do Pro-Amo era formado, principalmente, por pessoas com idade mais avançada, viciadas em máquinas caça-níqueis, jogo que é operado ilegalmente no Brasil.
A partir de 2018, porém, começaram a chegar mais pessoas na faixa de 30 e 40 anos, em busca de ajuda para lidar com o vício nas apostas esportivas. Tavares estima que esse público já seja um quarto das cerca de 80 pessoas novas que o programa acolhe por ano.
Na sua visão, a regulação que será adotada deveria ter regras rígidas para reduzir o problema, como destinar uma parte dos ganhos das empresas para financiar a expansão da rede de atendimento a viciados em jogos, que ainda é muito pequena no país.
Ele também defende que a publicidade deveria ser proibida, como ocorre no caso de cigarros, ou ao menos restringida, como no caso de bebidas alcoólicas. A ideia, que atingiria em cheio uma das principais formas de financiamento do futebol hoje no país, parece não estar sendo cogitada no momento pelo governo federal.
A BBC News Brasil enviou alguns questionamentos sobre a regulamentação do mercado ao Ministério da Fazenda, que, em sua resposta, defendeu a medida como forma de ampliar a arrecadação e a fiscalização do setor, para evitar manipulação de apostas e lavagem de dinheiro.
A pasta, no entanto, não respondeu se a regulamentação trará alguma restrição ao patrocínio de clubes de futebol pelos sites de apostas, devido ao aumento de viciados.
“Eu acho que deve haver uma proibição de patrocínio explícito que possa vir a afetar a população vulnerável, particularmente de menores de idade. Por que esse setor tem que ter tratamento preferencial em relação a cigarros e bebidas?”, questiona Tavares.
“Eu particularmente estou de saco cheio de assistir aos jogos do meu time ou da seleção e ficar o tempo inteiro sendo impactado com convites para apostar”, reclama.
Para se ter uma ideia da importância que esse tipo de patrocínio ganhou no Brasil, hoje 19 dos 20 clubes da série A do campeonato brasileiro recebem recursos dessas empresas.
Flamengo é um dos times que tem patrocínio de site de apostas
O Flamengo, por exemplo, fechou no final de 2021 um contrato de dois anos com a Pixbet, no valor total de R$ 48 milhões, que comprou, assim, o espaço do ombro da camiseta oficial do time para anunciar sua marca.
A Pixbet também patrocina Corinthians, Santos, Vasco e Cruzeiro, entre outros clubes menores. Outros exemplos são a Betano (Atlético-MG e Fluminense), Esportes da Sorte (Grêmio) e Sportsbet.io (São Paulo).
O advogado Felipe Maia defende a importância do patrocínio nesse momento de abertura do mercado, para que o usuário possa identificar as empresas legalizadas. Com a regulamentação, apenas sites que comprarem licenças do governo poderão atuar.
“Em mercados regulados, existe uma estrutura de proteção às pessoas com comportamento compulsivo, como um cadastro de autoexclusão, em que o jogador ou a família registra o documento desse usuário, que fica impedido de apostar. Ou fixa um limite de valor que pode apostar”, argumenta.
“Existem coisas que causam muito mais dano, como álcool e cigarro, e nenhuma delas tem esse tipo de proteção”, disse ainda.
Países europeus têm aumentado restrições
Segundo um levantamento de professores de Marketing da Universidade de Bristol, no Reino Unido, a restrição à propaganda desses sites têm crescido na Europa.
Na Itália, todo o marketing de jogos de azar na TV, rádio, imprensa e internet foi proibido em 2019, inclusive patrocínio de times de futebol. “Essa proibição geral foi introduzida logo após um estudo destacar que 3% da população italiana sofria de danos ao jogo”, diz um artigo publicado pelos professores de Bristol no portal The Conversation.
Alemanha, Bélgica e Holanda também têm restrições duras, como a proibição de propaganda durante jogos.
Já o Reino Unido, onde sites de apostas esportivas também financiam grandes clubes de futebol, discute no momento banir a propaganda dessas empresas na parte frontal das camisas oficiais.
A Liga Inglesa da Futebol (English Football League), patrocinada pela Sky Bet, e que administra os campeonatos da segunda, terceira e quarta divisões, diz que isso significaria um prejuízo de 40 milhões de libras ao ano (cerca de R$ 256 milhões) para seus 72 clubes.
Já a associação que representa o setor (Betting and Gambling Council) argumenta que a “esmagadora maioria” das 22,5 milhões de pessoas que apostam todos os meses no Reino Unidos o fazem “com segurança e responsabilidade”.
O setor diz ainda que o percentual de pessoas que têm problemas com apostas estaria em 0,3% da população adulta, o que seria baixo para padrões internacionais.
Hermano Tavares cita números maiores para o Brasil e chama atenção para o impacto do problema também sobre os familiares das pessoas viciadas.
“Ao longo da vida, 1% da população vai preencher critérios para transtorno do jogo e outro 1,3% terá uma síndrome parcial, ou o que a gente chama de jogo problemático. Somadas as duas parcelas, a gente tem 2,3% da população”, diz o psiquiatra da USP.
“E se você considerar a taxa de exposição, que é a pessoa que não aposta, mas convive com um apostador, e, consequentemente, sofre com todos os problemas dele, como desemprego, endividamento extremo, inadimplência, ser privado de oportunidades, isso pode chegar a 10% da população”, acrescenta.
No entanto, apesar de ser pessoalmente contra a legalização de jogos, o psiquiatra da USP diz que essa decisão não cabe ao setor de saúde isoladamente, já que há também argumentos econômicos favoráveis à atividade, como a geração de emprego e arrecadação de impostos.
“Não cabe ao pessoal da saúde definir se uma atividade como essa vai ser legalizada ou não. O pessoal da saúde vai apontar, quantificar, quais são os riscos e benefícios, e às vezes não saberá dizer se os riscos superam os benefícios ou o contrário”, ressalta.