Coreia do Sul anuncia fim de casas de porão no estilo “Parasita”

Muitas vezes pequenos, escuros e propensos a mofo durante o verão úmido, os banjihas ganharam notoriedade global após o lançamento do filme

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Seul, capital da Coreia do Sul, prometeu retirar algumas das famílias mais pobres de casas subterrâneas e semi-subterrâneas depois que 13 pessoas morreram em inundações causadas por chuvas recordes nesta semana, provocando horror e pedidos de responsabilidade do governo por parte da população.

Na noite de segunda-feira (8), chuvas torrenciais, as mais pesadas da cidade em mais de 100 anos, causaram graves inundações em muitos bairros ao sul do rio Han, arrastando carros e forçando centenas de moradores a evacuarem.

As mortes, que incluíram uma família que se afogou depois de ficar presa no subsolo, estimularam a capital da Coreia do Sul a acabar com as moradias estilo “banjiha” – os apartamentos de porão muitas vezes apertados e sujos ficaram popularmente conhecidas pelo filme sul-coreano “Parasita“.

Um núcleo familiar de três pessoas – uma mulher, sua filha de 13 anos e sua irmã de 40 anos com síndrome de Down – morreu depois que a pressão da água as impediu de abrir a porta de sua casa inundada no distrito de Gwanak, no sul de Seul.

A família morava em um banjiha – um apartamento meio subterrâneo, normalmente vários passos abaixo do nível da rua. No mercado imobiliário notoriamente caro de Seul, esses apartamentos são algumas das opções mais acessíveis disponíveis, o que significa que são habitados principalmente por jovens e pessoas de baixa renda.

Muitas vezes pequenos, escuros e propensos a mofo durante o verão úmido, os banjihas ganharam notoriedade global após o lançamento do filme de Bong Joon-ho, vencedor do Oscar de 2019, “Parasita”, que seguiu a tentativa desesperada de uma família fictícia de escapar da pobreza.

Desde então, as casas passaram a representar a desigualdade desenfreada em uma das cidades mais ricas do mundo.

Durante anos, houve pedidos crescentes para o governo fornecer moradias mais acessíveis, melhorar as condições de vida nos banjihas ou eliminá-los completamente – o que as autoridades prometeram fazer após protestos públicos sobre o tratamento da crise pelo presidente Yoon Suk Yeol.

“No futuro, em Seul, porões e semi-porões não poderão ser usados ​​para fins residenciais”, disse o governo da cidade de Seul em comunicado na quarta-feira (10).

No entanto, especialistas dizem que a promessa do governo ignora problemas maiores que persistem além das paredes do porão, de custos de vida vertiginosos que forçam as pessoas mais vulneráveis ​​a buscar abrigo em moradias precárias suscetíveis a inundações e calor.

Surgimento das casas de porão

Os banjihas foram construídos pela primeira vez na década de 1970 para servir como bunkers em meio às crescentes tensões com a Coreia do Norte, explicou Choi Eun-yeong, diretor executivo do Centro Coreano de Pesquisa de Cidades e Meio Ambiente.

À medida que Seul se modernizou na década seguinte, atraindo migrantes de regiões rurais, a diminuição do espaço levou o governo a permitir o uso residencial dos porões – mesmo que “não tenham sido construídos para fins residenciais, mas para abrigos antiaéreos, salas de caldeiras ou armazéns”, apontou Choi.

Há muito que os banjihas estão cheios de problemas como má ventilação e drenagem, vazamento de água, falta de rotas de fuga fáceis, infestação de insetos e exposição a bactérias, mas seu preço baixo é um grande atrativo à medida que Seul se torna mais inacessível.

A cidade é inviável financeiramente especialmente para os jovens que enfrentam salários estagnados, aluguéis em alta e um mercado de trabalho saturado.

O preço médio de um apartamento em Seul mais que dobrou nos últimos cinco anos, chegando a 1,26 bilhão de won (aproximadamente R$ 4,9 milhões) em janeiro deste ano – tornando-os menos acessíveis em comparação com Nova York, Tóquio e Cingapura.

As preocupações de segurança em relação aos banjihas foram colocadas em primeiro plano quando as graves inundações em 2010 e 2011 deixaram dezenas de mortos. Em 2012, o governo implementou novas leis que proíbem apartamentos banjiha em “áreas habitualmente inundadas”.

Mas a tentativa de reforma ficou aquém, com 40.000 banjihas adicionais construídos depois que a lei foi aprovada, de acordo com um comunicado de imprensa das autoridades da cidade.

Os órgãos novamente prometeram investigar a questão depois que “Parasita” destacou a precariedade das moradias, mas as atenções logo foram desviados pela pandemia de Covid-19, disse Choi.

A partir de 2020, mais de 200.000 apartamentos banjiha permaneceram no centro de Seul – representando cerca de 5% de todas as residências, de acordo com o Escritório Nacional de Estatística.

Junto com o fracasso em melhorar as moradias, o governo da cidade foi criticado este ano depois de reduzir seu orçamento anual para controle de enchentes e gestão de recursos hídricos em mais de 15%, para 17,6 bilhões de won (cerca de R$ 70 milhões).

Família se afogou

A família que morreu em Gwanak não conseguiu escapar de seu apartamento devido à água acumulada do lado de fora de sua porta, disse Choi Tae-young, chefe da sede metropolitana de incêndio e desastres de Seul.

O chefe de bombeiros e resgate acompanhou o presidente Yoon ao local das mortes na terça-feira (9), onde inspecionaram o prédio e entrevistaram alguns de seus moradores. As fotos mostram o presidente agachado na rua, espiando pela janela do térreo o apartamento do porão ainda inundado.

“Não sei por que as pessoas aqui não evacuaram com antecedência”, indagou Yoon durante a inspeção – uma observação que desde então foi amplamente criticada online.
“A água entrou em um instante”, respondeu um morador.

“Levou menos de 10 ou 15 minutos (para a água subir)”, reforçou outro morador, acrescentando que as vítimas “levaram vidas muito, muito difíceis”.

Em seu comunicado na quarta-feira (10), o governo da cidade de Seul disse que eliminaria gradualmente os apartamentos do porão e do banjiha “para que não possam ser habitados por pessoas, independentemente das inundações habituais ou das áreas propensas a inundações”.

Os banjihas são “um tipo de habitação atrasado que ameaça a vulnerabilidade da habitação em todos os aspectos, incluindo segurança e ambiente residencial, e agora deve ser eliminado”, afirmou o prefeito de Seul, Oh Se-hoon.

O processo de eliminação incluirá um “período de carência” de 10 a 20 anos para os banjihas existentes com licenças de construção, e os inquilinos serão ajudados a se mudar para moradias de aluguel público ou receber vales de moradia, detalhou e o governo em comunicado. Depois que os banjihas forem limpos, eles serão convertidos para uso não residencial, acrescentou.

Choi Eun-yeong, o pesquisador do ambiente urbano, expressou ceticismo sobre o suposto compromisso do governo de eliminar os banjihas, argumentando que a proposta era excessivamente ambiciosa e carecia de detalhes concretos, como informações sobre o cronograma ou valores de compensação.

“Na verdade, acho que há uma grande possibilidade de que seja apenas uma declaração e não seja implementado”, disse ela, apontando para as várias promessas do governo ao longo dos anos.

O mais pobre é o mais atingido

A chuva agora diminuiu em Seul, mas especialistas alertam que esse tipo de clima extremo e imprevisível se tornará apenas mais frequente e intenso devido às mudanças climáticas.

A crise climática está “aumentando a temperatura da Terra e do oceano, o que significa que a quantidade de vapor de água que o ar pode conter está ficando maior”, esclareceu Park Jung-min, vice-diretor da assessoria de imprensa da Administração Meteorológica da Coreia. “Depende do clima, onde essa bolsa de água vai despejar.”

Como costuma ser o caso, parece provável que os mais pobres estejam entre os mais atingidos.

“Aqueles que têm dificuldade em viver e aqueles que estão fisicamente doentes são mais vulneráveis ​​a desastres naturais”, disse o presidente Yoon na quarta. “Somente quando eles estão seguros, a República da Coreia estará segura.”

Problemas semelhantes ocorreram em outros países nos últimos anos; em partes da Índia , as inundações das monções destruíram repetidamente as favelas; em Bangladesh, muitas pessoas migraram de vilarejos para áreas urbanas para escapar de enchentes cada vez mais frequentes.

E nos Estados Unidos, pesquisas descobriram que famílias negras, latinas e de baixa renda são as mais prováveis de viver em áreas propensas a inundações.

Além do deslocamento crônico e dos meios de subsistência interrompidos, o aumento esperado das chuvas em toda a Ásia pode trazer uma série de riscos à saúde, incluindo maior risco de doenças diarreicas, dengue e malária, mais um golpe para famílias já empobrecidas sem acesso a cuidados médicos ou meios realocar.

Enquanto isso, inundações e secas podem causar pobreza rural e aumento dos custos dos alimentos, de acordo com o Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas .

Em Seul, os moradores de banjiha enfrentam o duplo perigo de inundações e ondas de calor, pontuou Choi Eun-yeong.

“As mudanças provocadas pela crise climática são quase catastróficas, especialmente para os mais vulneráveis, porque não têm moradia adequada para responder a essas condições.”