Mas isso não quer dizer que os imunizantes tenham um “prazo de validade” menor ou não sejam indicados nas faixas etárias mais avançadas.

Em primeiro lugar, nosso sistema imunológico é complexo e diverso, e sua atuação vai muito além dos anticorpos.
É preciso levar em conta, por exemplo, o papel das células de memória (que guardam as informações de como combater uma doença e são ativadas quando a ameaça é concreta) ou dos linfócitos T, um tipo de unidade de defesa que identifica e mata células infectadas antes que o problema se espalhe.
O segundo motivo é de ordem prática e vem da experiência dos países com a vacinação contra a covid-19 mais adiantada: como os idosos foram contemplados com as primeiras doses, o número de casos graves e mortes entre os mais velhos está em constante declínio desde então e não parece dar qualquer sinal de retomada até o momento.
Isso significa, portanto, que as vacinas estão funcionando, a imunidade segue num bom nível e há proteção suficiente contra hospitalizações e óbitos.
“Os dados mostram que, atualmente, as mortes relacionadas ao coronavírus nos EUA acontecem naqueles indivíduos que não foram imunizados, independentemente da faixa etária”, exemplifica Bonorino, que também integra a Sociedade Brasileira de Imunologia.
E todas essas informações nos revelam uma coisa: em linhas gerais, ainda não temos evidências de que a imunidade contra a covid-19 diminui após alguns meses, mesmo entre os idosos (embora se espere que o resultado de longo prazo seja pior entre aqueles que passaram da sexta década de vida).
Para ter certeza sobre isso, precisamos de estudos maiores e mais longos que confirmem quanto tempo dura essa proteção para, aí sim, determinar a necessidade de doses de reforços no futuro e qual será a periodicidade delas, em especial em algumas idades ou grupos prioritários.
Mutações que geram apreensão
O segundo ponto-chave que confirmaria a necessidade de uma terceira aplicação seria o surgimento de variantes do coronavírus com capacidade de driblar completamente o efeito das vacinas.
Por ora, as novas versões que surgiram não conseguiram esse feito, mesmo se considerarmos aquelas que integram a lista das mais preocupantes: Alfa, Beta, Gama e Delta até conseguem diminuir um pouco a eficácia dos imunizantes utilizados atualmente, mas não chegam a tornar essas doses obsoletas ou inúteis.
Elas também não parecem ser mais agressivas ou prejudiciais para alguma faixa etária específica, como os idosos.
“Nenhuma variante em circulação provocou um escape vacinal até o momento. Sabemos que elas estão relacionadas a uma queda na sensibilidade dos anticorpos, mas não conseguimos determinar ainda a exata medida disso e qual o mínimo necessário para manter essa proteção”, explica Lacerda.
Os anticorpos são substâncias produzidas pelos linfócitos B que costumam atuar contra partes bem específicas do agente infeccioso.
No caso do coronavírus atual, muitas das vacinas foram desenhadas para gerar os tais anticorpos contra a espícula, uma estrutura da superfície viral responsável por se conectar ao receptor das nossas células e dar início à infecção.
Acontece que as variantes trazem mutações justamente nessa espícula, o que reduz um pouco o efeito das substâncias imunes geradas pelos linfócitos B.
Mas, mais uma vez, a diversidade de nosso sistema imunológico aparece para salvar o dia, com seu batalhão de células que agem por diferentes vias para nos proteger.
Em outras palavras, embora as variantes configurem um motivo de preocupação e precisem ser observadas de perto, ainda não surgiu nenhuma versão nova do coronavírus com capacidade comprovada de escapar totalmente das vacinas em uso.
Mas a possibilidade de aparecer uma mutação com esse poderio existe sim, ainda mais quando temos uma boa parcela da população mundial desprotegida — o que nos leva, aliás, ao nosso próximo tópico de discussão.
Desigualdade global
Por fim, é sintomático notar que a discussão sobre a necessidade de uma terceira dose está concentrada justamente nos países mais ricos, que garantiram boa parte dos primeiros lotes produzidos.
Esse debate ganha terreno em lugares como Canadá, EUA, Israel e Reino Unido, que já imunizaram pelo menos metade de suas populações.
Enquanto isso, a maioria dos países da África não vacinou nem 5% de seus habitantes com a primeira dose e o Haiti, na América Central, só iniciou sua campanha contra o coronavírus no meio de julho de 2021.

“Não adianta falar em terceira dose num cenário em que alguns países já estão com 80% da população imunizada e outros não conseguem sequer ultrapassar os 10%”, aponta Cunha, da SBIm.
O especialista destaca o caráter global da covid-19 e entende que a pandemia só deixará de ser um problema quando todas as nações estiverem com casos e mortes controlados.
Numa fala recente à imprensa, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus chegou a classificar como “ganância” os projetos de terceira dose nos países mais ricos. “O abismo mundial no fornecimento de vacinas é irregular e desigual. Alguns países e algumas regiões estão encomendando milhões de doses, enquanto outros não vacinaram seus profissionais de saúde e os membros mais frágeis da população.”
Além de questionável do ponto de vista ético, essa disparidade tem efeitos práticos: as variantes costumam se desenvolver justamente em lugares onde a pandemia está fora de controle.
Nada garante, portanto, que uma nova versão do coronavírus, cheia de mutações capazes de resistir às vacinas, seja detectada justamente nos locais que não têm acesso a esses produtos e que, portanto, seguem com boa parte da população desprotegida.
“Nosso foco agora deveria estar em acelerar a campanha e aplicar duas doses no maior número de pessoas o mais rápido possível”, completa Cunha.
Num cenário de tantas incertezas e decisões precipitadas, nos resta ter calma, aguardar e conferir como a experiência de vida real e as evidências evoluem nos próximos meses.
Todos os vacinados contra o coronavírus precisarão de um reforço no futuro? Ou só aqueles que tomaram o imunizante X ou o Y? Será que apenas indivíduos mais velhos e com a imunidade comprometida tomarão a terceira dose?
Por ora, não há consenso científico sobre nenhuma destas questões — e qualquer decisão de governos estará baseada em conjecturas e especulações.
A ótima notícia é que, independentemente das variantes, os imunizantes usados atualmente são efetivos e estão ajudando a evitar muitos casos graves e mortes por covid-19.
O que precisamos agora é aumentar a parcela da população imunizada para que a pandemia, como um fenômeno global, seja efetivamente controlada no mundo inteiro — e não apenas no grupo das nações mais ricas.