O esgoto da internet

Jovens problemáticos exercitam sua loucura nos chamados chans, chats sinistros da deep web, e planejam crimes anonimamente. Seus alvos prioritários, além dos colegas da escola, são mulheres, negros e homossexuais

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Eles estão à espreita. À caça principalmente de mulheres e minorias. São, em geral, adolescentes e jovens adultos problemáticos, racistas, homofóbicos e misóginos. Cultuam a morte e promovem o que chamam de “actum sanctum” ou ataques cruéis contra pessoas inocentes. Muitos juntam a vontade suicida com o impulso assassino e se referem a outros seres humanos como “escória”. O palco dessa turma degenerada é a “deep web”, o esgoto da internet, onde se apresenta um mundo sórdido que tende a causar náuseas nas pessoas normais. A cultura do ódio e da violência é propagada abertamente e os frequentadores são convidados a matar e morrer num tom que às vezes parece brincadeira. Poderia ser apenas um espaço de conversa para jovens frustrados que não conseguem encontrar uma namorada. Mas não é. Pessoas estão sendo mortas sob inspiração dos fóruns diabólicos, chamados de “chans”. O uso dos “chans”, que não é um fenômeno só do Brasil, mas mundial, virou um grave problema de segurança. Na Austrália, por causa do ataque terrorista cometido por Brenton Tarrant, que matou 50 pessoas na Nova Zelândia, as empresas de telecomunicações bloquearam o acesso a vários fóruns, como o 4chan, o 8chan e o Voat.

CULTURA DO ÓDIO O estudante de Letras Marcelo Melo foi o criador do fórum diabólico. Ele cumpre pena de 41 anos de prisão por associação criminosa, racismo, terrorismo e divulgação de imagens de pedofilia pela internet (Crédito:Divulgação)

O principal canal de propagação de ódio pela internet no Brasil se chama Dogolachan e continua funcionando normalmente. O endereço saiu, mais uma vez, das profundezas da rede e ganhou o noticiário quando se descobriu que os dois atiradores que mataram dez pessoas e depois se suicidaram na Escola Raul Brasil, em Suzano, Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, 25, na quarta-feira 13, eram freqüentadores assíduos do fórum. Taucci Monteiro, inclusive, agradeceu o administrador, autodenominado DPR, pelas orientações recebidas para a execução do crime. “Nascemos falhos, mas partiremos como heróis”, declarou. Um terceiro envolvido no caso, G.V.G.O, de 17 anos, também participava dos debates sinistros. G.V.G.O, considerado o mentor do ataque, foi apreendido e ficará preso preventivamente por 45 dias.

O Dogolachan foi criado, em 2013, pelo estudante de letras da UNB Marcelo Valle Silveira Mello, que administrava o fórum com o nome de Psy. Ele agora está na cadeia. Foi condenado, em 2018, a 41 anos de prisão por associação criminosa, divulgação de imagens de pedofilia, racismo, coação, incitação ao cometimento de crimes e terrorismo pela internet. Mas sua criação segue em pé. No ano passado, o fórum migrou da web para a “deep web”, a parte mais restrita da internet que requer o uso de navegadores com distribuição de acesso, como o Tor, e não permite a identificação do usuário pelo endereço IP. Seus participantes comemoraram efusivamente o ataque em Suzano. Pelo menos dois jovens foram apreendidos por causa do planejamento de crimes de ódio. Um aluno de 17 anos que utilizava o Dogolachan esfaqueou um colega no Ciep Brizolão, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio. Outro jovem de 16 anos foi detido sob suspeita de planejar um ataque na escola estadual onde estuda no dia 20 de abril, mesma data do atentado em Columbine, em 1999, que matou 12 alunos e um professor na Columbine High School, nos Estados Unidos.

A HORA DO TERROR Um terceiro jovem participou do planejamento do ataque à escola Raul Brasil. Mensagens de Whatsapp revelaram o envolvimento de G.V.G.O na conspiração. Ele sonhava superar o massacre de Columbine (Crédito:Divulgação)

Festival de atrocidades

A rotina de discussões no fórum na “deep web” foi acompanhada pela ISTOÉ durante os últimos dias e o que se viu foi um festival de atrocidades. Um diálogo típico do Dogolachan, travado no dia 19, terça-feira, mostra o descaramento de seus participantes. “Olá, confrades, venho aqui pedir-lhes sugestões de como posso entrar na prefeitura da minha cidade (interior) e plantar uma bomba-relógio em seu centro, já estou mapeando a unidade há algumas semanas, em breve mandarei para vós”, diz uma postagem anônima. E a resposta: “Posso ajudar, estou planejando realizar um atentado também. Se quiser se comunicar por um canal mais privado, avise”. Os participantes do fórum planejam atentados como se trocassem receitas de bolo. Nas conversas no “chan” os jovens se enchem de motivação para praticar maldades. Ensina-se, por exemplo, a fazer coquetéis molotov, bombas relógio usando o aparelho celular e se enaltecem figuras repulsivas como Adolf Hitler, o terrorista Theodore Kaczynski, o Unabomber, o assassino do Realengo, Wellington Menezes de Oliveira, ou os matadores de Columbine, Eric Harris e Dylan Klebold. Também são passadas dicas e orientações para não serem identificados pela polícia, que eles chamam de “bostícia”. A troca de HDs dos computadores e laptops é recomendada de tempos em tempos. E nada de deixar o dispositivo usado guardado em casa. É preciso se livrar dele para não ir para a cadeia e “virar rodízio de pedófilos”. “Acho que, em geral, a polícia não leva esse problema muito a sério e falta preparo para enfrentar crimes cibernéticos”, diz a ativista e professora de literatura inglesa da Universidade Federal do Ceará, Dolores Aronovich, que nos últimos anos tem sido o alvo preferencial do Dogolachan por conta de suas denúncias freqüentes contra a propagação do ódio. “Fiz 11 boletins de ocorrência por conta de ameaças, fiquei cinco anos denunciando e a polícia nunca foi atrás”.

Ameaças de morte

Há alguns dias, Lola recebeu mais uma ameaça de morte de participantes do fórum. “Aguarde mais 100 ataques ainda melhores que o de Suzano, Dolores. E não preciso dizer que um desses ataques será alguém descarregando uma arma no seu corpo cheio de banhas, né? Não vou te ameaçar mais porque você pode acabar fugindo ou pedindo proteção do PPDDH e sair do país, mas é questão de tempo ver a tua banha espalhada no chão com seu vestido tamanho cortina manchado com os seus 10 litros de sangue, kra kra kra. Coma muito, peide muito e cague muito, Dolores. Aproveite muito bem seu tempo restante de vida”, diz. PPDDH é o programa de proteção aos defensores dos direitos humanos. As postagens às vezes parecem blefes ou ameaças vãs. Mas a conexão entre o mundo pervertido dos “channers” e a realidade só se torna mais forte e criminosa. Em junho do ano passado, André Luiz Gil Garcia, de 29 anos, um dos administradores do Dogolachan, que atirou e matou Luciana de Jesus Nascimento, de 27 anos, em Penápolis, no interior de São Paulo. Luciana estava com uma amiga num lugar da cidade conhecido como camelódromo e foi assediada por André, que convidou as duas mulheres para sair. Diante da negativa, atirou em Luciana pelas costas. Perseguido pela polícia, voltou a arma para si e se suicidou com um tiro no peito. Antes de cometer o crime comunicou no Dogolachan que pretendia se suicidar e seus interlocutores trataram de dizer que ele deveria “levar a escória junto”. “Antes de se suicidar vire um herói. Mate mulheres, homossexuais e negros e só depois se mate”.

Os atentados exibem um viés propagandístico e há uma evidente motivação de ganhar fama com os crimes. Quando decidem fazer um ataque, eles buscam, principalmente, a divulgação de seu ato. Funciona de forma parecida aos atentados terroristas. Eles reafirmam sua existência torturada e saem do anonimato graças à morte de inocentes. “Não há nada mais alpha do que morrer metendo o louco. A ascensão de status é imediata”, diz um freqüentador do Dogolachan. Segundo a polícia, depois do massacre em Suzano, G.V.G.O dizia para um interlocutor que “para chamar atenção da imprensa, nego que era meu amigo até queria estuprar para o crime ficar mais pesado”. O que se busca também com a realização de atentados é o conhecido efeito “copycat”, que motiva a repetição de ações de assassinos e suicidas.

Doença mental

Para o psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo, Rodrigo Leite, esse tipo de disfuncionalidade não chega aos consultórios, por se manifestar exclusivamente nos fóruns digitais anônimos, onde atrocidades são estimuladas com a certeza da impunidade. É onde os “incels” — contração em inglês para “celibatários involuntários” —, jovens com dificuldades sociais, despejam suas frustrações. Uma das principais é a sexual, por se consideraram ignorados pelas meninas. As atitudes violentas resultantes deste caldo de ressentimento sequer podem ser classificadas como indicativas de enfermidade mental, ainda que seja uma desculpa fácil classificar seus autores como doidos. “Está mais para uma doença social”, diz Leite. Para ele, ainda que esses homicidas integrem um movimento recente, está muito claro que o ódio que destilam não é uma doença. Se fosse, integrantes de grupos terroristas e racistas iriam para manicômios judiciários em vez de penitenciárias. “Há muito de pensamento místico no discurso deles, que é alimentado por fantasias de heroísmo e exposição midiática, como se fossem mártires”, afirma. O psiquiatra alerta que não há perfil clássico para os perpetradores. Afinal, não dá para classificar como suspeito todo o jovem que passa suas horas de lazer jogando videogames ou trocando mensagens em fóruns.

AMEAÇAS A professora Dolores Aronovich é a vítima mais frequente de ataques virtuais no Dogolachan (Crédito:Divulgação)

A gênese dessas atitudes é alvo de estudos nos Estados Unidos desde a virada do século. Lançado em 2013, “Angry White Men” (“Homens Brancos Furiosos”), do sociólogo Michael Kimmel, discute as ameaças ao modelo tradicional de masculinidade branca, que tem seu papel de dominação ameaçado pelos avanços das minorias sexuais e raciais. O resultado disso veio, de forma ampla, no avanço do radicalismo da direita racista e, de modo pessoal e extremo, nos ataques de atiradores aos integrantes das instituições de poder que os oprimiriam, como escolas, universidades, e locais de trabalho. Parece ser esse um dos problemas dos fanáticos do Dogolachan.